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Homenageados 2022

IZAÍRA SILVINO

IZAÍRA SILVINO

A vida (en)cantada da maestrina

Homenageada neste ano pelo Mi – Festival Música da Ibiapaba, a cantora e regente Izaíra Silvino deixou na memória coletiva o som doce de sua devoção à música, exercitada ao longo de meio século de carreira, nos palcos e nas salas de aula.

Em agosto de 2021, Izaíra Silvino deixou de ser nome próprio e se tornou substantivo abstrato, amálgama de dedicação, amor e estesia. Virou verso, a ser ecoado pelas centenas de vozes por ela regidas ou lapidadas. Na memória musical do Ceará, eternizou-se verbete. Maestrina, cantora, compositora, instrumentista e professora, partiu aos 75 anos deixando um legado marcante na criação e no ensino da música.

Nesta 17° edição, o Mi – Festival Música da Ibiapaba faz um justo reconhecimento a esse patrimônio ao elencar a musicista como uma de suas homenageadas.

Natural de Baturité (CE), Maria Izaíra Silvino Moraes foi uma verdadeira referência nas áreas de canto coral e educação musical no Estado. Colaboradora de importantes instituições de ensino e artísticas no Ceará, teve atuação destacada na Universidade Federal do Ceará, onde foi regente do Coral da UFC de 1981 a 1989 e integrou o quadro de docentes na Faculdade de Educação (FACED) nos anos seguintes, entre 1990 e 1996.

As vozes da maestrina

Não por acaso, foi durante seu período de intensa atividade no movimento coralista de Fortaleza, entre as décadas de 1980 e 1990, que o gênero atravessou seu período de maior efervescência no Estado. Junto à professora Leilah Carvalho Costa na preparação vocal, Izaíra Silvino desenvolveu um trabalho com ênfase na música brasileira – em especial de artistas nordestinos – e no coro cênico.

Durante o período como professora da UFC, criou também o Coral da FACED e em 2014, já aposentada, foi responsável  pela reativação do Coral da Associação dos Docentes da UFC (ADUFC), onde atuou como regente por três anos. 

Durante sua carreira, Izaíra Silvino também foi regente e diretora musical de outros corais de Fortaleza, a exemplo do Coral Moenda de Canto, Coral do Povo, Coral da Embratel, Coral da CUT, Coral da Biodança e Coral dos Amigos de Izaíra Silvino.

Ao longo desse trabalho com diversos grupos, a maestrina contribuiu de maneira decisiva para a revolução do canto coral na cidade, transformando as apresentações em verdadeiros espetáculos – formato vigente até hoje. 

Quem já assistiu a alguma apresentação do Coral da UFC nos últimos anos, ao vivo ou mesmo em trechinhos de vídeos espalhados pela internet, pode atestar a grandeza da proposta. Do figurino à iluminação, passando pela coreografia, escolha de temas e curadoria do repertório, os espetáculos levam o gênero do canto coral a outro patamar. 

Essa estratégia de investimento e multiplicação de corais foi primordial para a construção da proposta pedagógica que hoje embasa a formação de professores de música da UFC. 

Entre 1982 e 1986, Izaíra Silvino esteve à frente do projeto “Nordeste – Encontros Musicais da UFC”, cuja quinta edição é considerada um marco para criação do Curso de Música na Universidade.

Mesmo aposentada do Departamento de Teoria e Prática do Ensino, da FACED, Izaíra Silvino colaborou para a elaboração dos projetos pedagógicos e a criação dos cursos de Música da UFC em Fortaleza (2006), Sobral (2010) e Juazeiro do Norte (2010), este último, na atual Universidade Federal do Cariri (UFCA).

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Caminho pelas artes

Izaíra Silvino despertou para a música ainda criança, quando aprendeu a tocar bandolim com a professora Amélia Cavalcante, em Iguatu. Em Fortaleza, fez o Curso Fundamental de Música no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno (CMAN), entre 1959 a 1964. 

Com a mudança da família para a Capital, pôde estudar canto orfeônico e integrou o Coral do Colégio Santa Maria Goretti, sob a batuta do maestro Antônio Gondim de Lima, e tocou violino na Orquestra Sinfônica Henrique Jorge, regida pelo maestro Orlando Leite.

Graduou-se em Direito pela UFC em 1969, mas, felizmente para as Artes, decidiu ingressar no Curso Superior em Música do Conservatório Alberto Nepomuceno, licenciando-se em Educação Musical em 1973. Após se formar, decidiu ir para o Crato, no Cariri, onde conheceu o projeto de música do Padre Ágio Moreira.

Ali conquistou sua primeira experiência como regente à frente do coral Santa Cecília, da Sociedade Lírica do Belmonte (Solibel) e teve certeza da paixão pelo ofício. Seguiu aprofundando os estudos e, nos anos seguintes, obteve os títulos de especialista em Música do Século XX pela Universidade Estadual do Ceará (1989) e de mestra em Educação pela UFC (1993).

No Mi, a primeira participação de Izaíra aconteceu em 2013, na 10º edição do evento, quando ministrou a oficina de XXXX. Em 2018, retornou acompanhada da irmã Aparecida e do filho Davi Silvino, também chamados para integrar o time de professores. Neste ano, a homenagem do festival segue-se a outras anteriores, entre elas o batismo, em março deste ano, da Sala Izaíra Silvino, no Theatro José de Alencar (TJA), em Fortaleza, e a homenagem em 2020 com o Troféu de Sereia de Ouro, da TV Verdes Mares.

“Sou Izaíra, regente de coral, compositora. Vivo na música, mergulho na música e não morro afogada, essa sou eu, Izaíra Silvino”, disse em um trecho da apresentação para a homenagem do veículo de comunicação. 

Por ocasião de sua morte, coube à irmã mais nova, Aparecida Silvino, a melhor definição do legado da multiartista: “sua missão se cumpre em nós todos os dias!”, resumiu. Izaíra Silvino deixou marido, dois filhos e milhares de cearenses impactados pela sua extraordinária dedicação à música e saudosos de sua generosidade e sorriso largo. 

LUIZINHO DUARTE

LUIZINHO DUARTE

Mestre do ritmo e do improviso

Em várias edições do Mi – Festival Música da Ibiapaba, o nome do percussionista Luizinho Duarte já era esperado na lista de professores das oficinas. Assim como nos palcos onde fez história, ele também brilhou em projetos de formação pelo Estado

O ano de 2022 não começou fácil para a música cearense, seus artistas e público. A partida de grandes nomes do setor deixou saudades e lacunas difíceis a serem preenchidas. Somente o mês de abril concentrou três dessas perdas: uma delas foi a do multi-instrumentista Luizinho Duarte, que se despediu aos 68 anos – apenas três dias depois da partida de outro ícone, o também virtuoso Tarcísio Sardinha.

O luto, no entanto, é amenizado pela certeza da enorme contribuição que esses gigantes deixaram ao longo de suas carreiras. Não apenas no sentido de produtos – composições, discos e outros trabalhos – mas de formação de novos talentos. No caso de Luizinho Duarte, o entusiasmo pela educação pulsava tão forte quanto a verve para a criação.

Baterista, violonista, arranjador, compositor e professor, Luizinho começou a tocar percussão aos 15 anos, influenciado por um ambiente familiar bastante musical. Não demorou até engatar os  primeiros trabalhos em bailes e eventos, onde seguiu com seu aprendizado autodidata. Nos anos 1980, passou a chamar atenção ao participar de grupos e acompanhar cantores. Na década seguinte, a convite do amigo e colega Adriano Giffoni, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou com grandes nomes da MPB, a exemplo de Maria Bethânia, Tim Maia, Elza Soares, Jonny Alf e Zezé Motta.

A veia compositora, no entanto, pulsava inquieta e exigia desvios dos padrões impostos pelo mercado fonográfico. Incentivado por Giffoni e outros colegas, passou a escrever suas primeiras composições. Mais seguro, voltou a Fortaleza e, em 1999, fundou o projeto pelo qual se tornou mais conhecido: o quarteto Marimbanda, junto a Heriberto Porto (flautas), Thiago Almeida (piano) e Pedro Façanha (baixo). O quarteto se tornou referência da música instrumental no Ceará, ao passear com excelência por ritmos brasileiros como baião, frevo, choro, samba e bossa nova, aliados a releituras jazzísticas.

Ao longo da carreira, Luizinho Duarte também idealizou e dirigiu os grupos Só com Z Trio (com o pianista Luizão Paiva e o baixista Luiz Alves); Metalira Big Band; Gargalhada Choro Banda; e o Trio Herluno (com Luís Hermano Bezerra e Nonato Lima), além de ter firmado incontáveis parcerias musicais. Fagner, Zeca Baleiro, Carlos Malta, Ricardo Herz, Adelson Viana, Ítalo Almeida, Carlinhos Ferreira, Cristiano Pinho, Calé Alencar e Amelinha são uma pequeníssima amostra da lista. 

A extraordinária versatilidade de Luizinho lhe permitia experimentar em estilos tão diversos quanto frevo, afoxé, salsa, valsa, reggae e samba. Tornou-se um verdadeiro mestre na técnica de improvisação, sempre arrancando elogios dos colegas pela performance nos shows. Em mais de 50 anos dedicados à música, acumulou cerca de 550 composições.

Com a Marimbanda gravou três discos: Marimbanda (2001), Tente Descobrir (2006) e Caminhar (2020), e o DVD Epifania Kariri (2019), com Carlos Malta e os Irmãos Aniceto. Além disso gravou o CD Garimpo (2009) das suas composições com diversos intérpretes. Sozinho ou com o quarteto, passou por inúmeros palcos do Estado, do País e do exterior. Era convidado assíduo de festivais, entre eles, claro, o Mi – Festival Música da Ibiapaba, onde ministrou oficinas e se apresentou em diversas edições.

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Fora dos palcos, o professor

A educação musical, aliás, foi a outra vertente da carreira de Luizinho Duarte, que ele desempenhou com igual primazia. Pelo mestre passaram gerações inteiras de jovens instrumentistas, tanto em oficinas livres, cursos, aulas particulares ou projetos regulares. Durante oito anos, coordenou o projeto musical Crescer com Arte, da Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI, órgão da Prefeitura de Fortaleza, onde trabalhou diferentes possibilidades da música com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Também foi professor da Orquestra de Sopros de Pindoretama e maestro e arranjador do Grupo Uirapuru – Orquestra de Barro, fruto da pesquisa do artista plástico e luthier Tércio Araripe, com instrumentos percussivos de cerâmica. Em 2003, o curso de Música da Universidade Estadual do Ceará (UECE) outorgou a Luizinho Duarte o título de notório saber e o convidou a ministrar oficinas de Prática de Conjunto e Bateria.

Um dos últimos reconhecimentos ocorreu em 2020, quando ganhou o Prêmio Fomento Cultura e Arte do Ceará, concedido pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) via Lei Aldir Blanc, por sua trajetória artística. São homenagens que atestam a enorme contribuição de Luizinho para a arte e a educação no Ceará, ciente do poder da música como ferramenta de transformação social. Seremos eternamente gratos, mestre!

O Mi – 17º Festival Música da Ibiapaba é realizado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult Ceará), e o Instituto Dragão do Mar (IDM), em parceria com a Secretaria da Educação (Seduc Ceará), a Prefeitura de Viçosa do Ceará e apoio da Prefeitura de Sobral, através da Secretaria da Cultura e Turismo e Instituto Ecoa.

TARCÍSIO SARDINHA

TARCÍSIO SARDINHA

Peixe grande, talento inesquecível

Homenageado da 17º edição do Mi – Festival Música da Ibiapaba, o multi instrumentista Tarcísio Sardinha destacou-se em mais de 40 anos de carreira não apenas por seu virtuosismo e didática, mas pela generosidade com que sempre tratou amigos e colegas

Naquele dia, os lamentos se espalharam pelas redes sociais, ambientes de trabalho, mesas de bar ou até em lágrimas solitárias que escapavam dos olhos à revelia. Porque além de músico virtuoso, Tarcísio Sardinha (1964-2022) parecia ser dessas pessoas queridas por unanimidade. Sua partida, em abril deste ano, deixou saudosos não apenas família e amigos, mas centenas de colegas, alunos e ex-alunos – gente que atesta a vocação primordial de Sardinha: a de mestre, na total inteireza da palavra.

Ao longo de mais de 40 anos de carreira, o multi-instrumentista foi extremamente generoso no ensino da música, exercendo o papel de educador dentro e fora das salas de aula, identificando, acolhendo e incentivando talentos e oferecendo oportunidades. Não por acaso, sua precoce passagem, aos 58 anos, foi seguida de justas homenagens, e com o Mi – Festival Música da Ibiapaba não poderia ser diferente. 

Parceiro antigo do evento, o violonista acumulava participações tanto nos palcos quanto nas oficinas, onde foi responsável pela iniciação ou aprimoramento de centenas de estudantes e musicistas, amadores e profissionais. O mesmo empenho era dedicado a qualquer outro projeto: institucional ou informal, em workshops, shows ou nas incontáveis rodas de samba e choro por Fortaleza, nas quais era presença constante. Sardinha estava sempre disposto a ensinar, e não é exagero dizer que foi responsável direto pela formação de gerações inteiras de músicos no Ceará.

No MI, estreou em 2008, quando ministrou uma oficina de Prática de Conjunto de Choro. Retornou ao evento várias vezes em anos seguintes, como professor, atração principal ou acompanhando colegas e bandas. Em 2019, destacou-se de maneira especial na programação, quando subiu ao palco para fazer show de lançamento da segunda edição do seu songbook.

Produzido pelo projeto Tremembé, da Orquestra Popular do Nordeste, o livro revela-se um importante documento, ao registrar uma centena de choros da autoria de Sardinha, compostos ao longo de sua carreira, a exemplo de “Jumento com Coalhada”, “Mar de Iracema”, “Conversa de Bêbado” e “Fim de Tarde”. 

Autodidata na cara e coragem

Multi Instrumentista, compositor, arranjador e virtuoso do violão, Tarcísio Sardinha é o que se poderia chamar de músico nato: com apenas 11 anos, pegou um violão e decidiu aprender por conta própria. Aos 13, subiu pela primeira vez em um palco; aos 15, já era músico profissional, tocando junto a artistas com o dobro, o triplo de sua idade, em rodas de choro. “Quando peguei num violão pela primeira vez – parece mentira – com três meses eu já estava praticamente profissional”, disse o mestre em entrevista em 2010 para a Revista Entrevista, publicada pelo curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará.

A postura autodidata nunca deixou de acompanhá-lo, e estava lá quando decidiu aprender outros instrumentos. Foi assim com o cavaquinho, depois a guitarra, o bandolim, o piano. “Eu me acordava de madrugada às 4 horas da manhã, e descia para estudar piano. Sozinho. Com três meses – a mesma coisa do violão – eu estava trabalhando, tocando piano”, recordou, na mesma entrevista.

Embora tenha nascido em São Luís (MA), Tarcísio de Lima Carvalho considerava-se cearense por ter crescido em Fortaleza. O apelido de peixe foi dado pelo amigo e flautista José Tróglio Filho, criador do grupo O Pixinguinha, do qual o mestre participou na década de 1980. Na ocasião, Tróglio achou aquele moleque de 16 anos, magro e com bigodinho fino parecido com o violonista e compositor Garoto (1915-1955), cujo nome real era Aníbal Augusto Sardinha.

Somados, empenho e a aptidão fora do comum logo fizeram de Tarcísio um dos profissionais mais completos e requisitados da cena musical cearense, sobretudo pela experiência na execução e harmonização de diferentes estilos musicais. Ainda nos anos 1980, passou a acompanhar grandes nomes da música local e nacional.

Ao longo da carreira, dividiu palcos e sessões de gravação com a nata da MPB, incluindo nomes do porte de Altamiro Carrilho, Sílvio Caldas, Dominguinhos, Fagner, Belchior, Ednardo, Amelinha, Yamandu Costa, Zé Renato e Silvério Pontes. Também foi responsável pela direção musical de shows de artistas como Falcão, Fausto Nilo, Zeca Baleiro, Waldick Soriano e Clementina de Jesus. No fim de 2021, lançou nas plataformas digitais o disco “Brasileirando”, de 1999 – decisão importante para a preservação de sua obra, ao facilitar o acesso das novas gerações a parte de suas composições.

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Semeador de música

Além de seu talento como instrumentista, Tarcísio Sardinha também construiu um enorme legado pela educação, ao contribuir de maneira decisiva para a formação de incontáveis músicos e para a formação de modo geral de crianças e jovens – afinal, a música traz muito mais ensinamentos do que apenas o técnico.

Sua atuação como professor em oficinas acontecia desde a década de 1990, em projetos voltados ao choro e à música brasileira. Com uma estratégia didático-pedagógica que privilegiava inicialmente a prática, para só depois introduzir a teoria musical, Sardinha colaborou para a criação de vários grupos em Fortaleza e várias cidades do Interior. Um destaque foi sua atuação como coordenador do projeto Tapera das Artes, em Aquiraz, onde durante seis anos Sardinha desenvolveu seu método especialmente criado para crianças e adolescentes.

Ele era, acima de tudo, um mestre. Ele não nos ensinava apenas a questão da música e da entonação. Ele ensinava as minúcias da vida e da arte”, resumiu a cantora Vannick Belchior, em entrevista por ocasião da morte de Sardinha. Caçula do imortal Belchior, Vannick credita a Tarcísio sua decisão de seguir carreira na música. Assim como ela, incontáveis amigos e fãs do instrumentista seguem saudosos, mas honrando sua memória, marcada não apenas pelo talento, mas pela postura diante da vida. Generoso e humilde, Sardinha foi um gigante.

O Mi – 17º Festival Música da Ibiapaba é realizado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult Ceará), e o Instituto Dragão do Mar (IDM), em parceria com a Secretaria da Educação (Seduc Ceará), a Prefeitura de Viçosa do Ceará e apoio da Prefeitura de Sobral, através da Secretaria da Cultura e Turismo e Instituto Ecoa.

MARIVALDA KARIRI

MARIVALDA KARIRI

Mestra da sanfona, embaixadora do forró

Marivalda Kariri foi a mulher que levou o forró pé-de-serra ao Norte do País. Em mais de 60 anos de carreira – boa parte deles vividos sobre os palcos –, acumulou discos, sucessos e projetos sociais que transformaram a vida de muita gente

Tudo em Marivalda Kariri era superlativo. Foram mais de 60 anos de carreira, 25 discos gravados, nos quais cantou, tocou e compôs, além dos trabalhos como cineasta, diretora, roteirista, atriz e produtora cultural. Uma gigante, que contribuiu de maneira definitiva para a popularização do forró tradicional além das fronteiras do Nordeste. Em abril deste ano, Marivalda partiu deste plano, onde deixou saudades, um imenso legado para a cultura no País e, pasmem, projetos inacabados. Aos 80 anos, mantinha-se ativa nos palcos e em outros espaços por onde espalhava seu talento.   

Foi em reconhecimento a essa trajetória que o 17º Mi – Festival Música na Ibiapaba incluiu a cearense entre seus homenageados. Nascida em Milhã, Maria Valníria Pinheiro enfrentou um trauma logo cedo. Órfã de mãe aos três anos, passou parte da infância e adolescência em um internato no Recife (PE), enviada pelo próprio pai. Lá, percebendo o talento da menina, as freiras deram-lhe lugar de destaque no coral da capela.

Certo dia, por ocasião da coroação de Nossa Senhora na cidade, Marivalda se apresentava com o grupo quando foi notada por ninguém menos que seu grande ídolo, Jackson do Pandeiro – atração da festa na ocasião. Impressionado pela voz da menina, convenceu as freiras a deixá-la dividir o palco com ele. No fim do show, o Rei do Ritmo lhe disse: “você nasceu artista, vá brigar pelo seu espaço”.

Após um tempo em busca de oportunidades, retornou a Milhã para seguir o caminho imposto às mulheres: casou e teve filhos, mas sem nunca esquecer a música. Eventualmente, abandona o matrimônio e, com as economias guardadas, muda-se para Fortaleza com sua prole de quatro, sustentada com as apresentações em casas de forrós, casamentos e outros eventos. Daqui, parte rumo a São Paulo, nos anos 1970, decidida a alavancar a sonhada carreira. Graças aos contatos estabelecidos, consegue gravar o primeiro disco, “Você pode ficar rico na zueira”.

Foi no estúdio de gravação, aliás, que conheceu o segundo marido, Zeca Costa, amor de uma vida inteira e grande parceiro musical. Com ele formou o romântico Duo Diamante, marcado por sucessos. Também ganhou o apoio e a amizade do maestro Oscar Cardin, um de seus padrinhos artísticos, responsável por levar Marivalda para a RGE Discos. Graças ao contrato com a nova gravadora, a forrozeira virou sucesso nos salões de São Paulo e posteriormente empreendeu a turnê que mudaria sua vida, ao lado do ícone do baião, Luiz Gonzaga.

Em busca de atrair novas plateias, à época o Rei idealizou uma turnê pela região Norte, com a ideia de apresentar novos nomes do forró ao público – entre eles, Marivalda Kariri. A cantora chegou ao Pará em 1975; com Gonzaga, fez shows em Santarém, Ilha de Marajó; chegou até Amazonas e Rondônia. Perto do fim, ouviu um conselho certeiro do mestre: fazer morada e carreira ali mesmo, na região Norte, apinhada de nordestinos e seus descendentes, graças aos ciclos da borracha e à “febre do ouro”. Além da dificuldade de acesso à arte e entretenimento, ainda tinham com o forró uma ligação visceral, de memória e pertencimento.

Dito e feito: foram mais de 20 anos dedicados a um nicho que sempre lhe foi fiel. Em troca, a energia de Marivalda e seu Grupo Kariri levou-os a desbravar os mais recônditos lugares da região. Ganhou dinheiro, criou os filhos, ajudou a família e imprimiu seu nome para sempre na música brasileira.

Marivalda foi a primeira a misturar forró com humor, em letras divertidas que apelavam para o duplo sentido – estratégia de sobrevivência frente às tendências homogêneas agendadas pela grande mídia e pelo mercado fonográfico. “Toco cru pegando fogo”, “Mulher de garimpeiro”e “A dança do jumento”são exemplos de sucessos impressos na memória do público. 

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Atuação fora dos palcos

Marivalda Kariri também se destacou fora dos palcos, em ações educativas, de produção cultural e assistência social. Criou uma ONG em Rondônia para ajudar vítimas de conflitos por terra; na cidade natal Milhã, desenvolveu projeto de formação com o Museu e Casa de Cultura Marivalda Kariri; participou e executou o projeto Artista Presente do Edital Secult/Seduc, para as escolas de ensino integral do Sertão Central nos Municípios de Quixadá, Quixeramobim e Pedra Branca.

Com o avanço da idade e algumas complicações de saúde, retornou ao Ceará, onde deu continuidade à carreira de maneira plural. Em 2015 Marivalda Kariri apresentou o show “50 anos de veredas e caminhos”, gravado em DVD ao vivo no teatro Dragão do Mar de Fortaleza (CE).

Em 2016, lançou o longa-metragem “A Rainha e Seus Reis de Barro” com estreia no Cineteatro São Luiz para mais de mil pessoas. No filme, Marivalda narra sua vida e a de outros ícones da cultura cearense: Messias Holanda (cantor), Zé de Manu (sanfoneiro) e Pedro Bandeira (poeta e repentista). 

Em 2020, no auge da pandemia, a artista realizou quatro lives comemorativas aos seus 80 anos de vida, patrocinadas pelo BNB. Em 2021, gravou o CD/DVD intitulado “Marivalda Kariri 80 anos – Fados, Choros e Canções” no Teatro José de Alencar. No mesmo ano, realizou o show presencial do registro, no palco do Cineteatro São Luiz. Pouco antes de sua partida, começava os preparativos para promover o tradicional Arraial de São João, no Museu do Sertão.

O Mi – 17º Festival Música da Ibiapaba é realizado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult Ceará), e o Instituto Dragão do Mar (IDM), em parceria com a Secretaria da Educação (Seduc Ceará), a Prefeitura de Viçosa do Ceará e apoio da Prefeitura de Sobral, através da Secretaria da Cultura e Turismo e Instituto Ecoa.

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